por Dr. Leonardo Machado
Feche os olhos, não sinta medo. Os monstros se foram, estão
lá fora e seu pai está aqui, menino bonito.
Belo menino, antes de ir dormir, faça uma pequena prece.
Todos os dias e todos os caminhos vão ficando melhores, menino bonito.
Pelo oceano navegando, mal posso esperar para ver você
crescer, mas acho que precisamos ser pacientes porque ainda temos um longo
caminho à frente; muito o que remar. O caminho é longo, mas por enquanto...
Para atravessar a rua segure a minha mão, a vida é assim,
acontece enquanto você faz planos, menino bonito.
Belo menino, antes de ir dormir, faça uma pequena prece.
Todos os dias e todos os caminhos vão ficando melhores, menino bonito.
Menino bonito, querido Sean...
***
Estas palavras sensíveis certamente expressam o que muitos
de nós gostariam de ter escutado de seus pais, ou de ter falado para seus
filhos.
Curioso é notar que elas saíram justamente de um coração
cicatrizado pela ausência paterna. E pior, massacrado pela presença inesperada
do genitor reivindicando direitos de amor e de gratidão filial, justamente
quando o pequenino, então crescido, ganhava fama internacional naquela que
seria a maior banda de todos os tempos - The
Beatles.
John Lennon é daquelas figuras lendárias
e polêmicas no cenário musical. Sem adentrarmos, porém, no mérito de seus
posicionamentos, percebemos nele uma alma sensível que encontrou na arte a
forma de sobreviver emocionalmente, sublimando algumas de suas encrencas
internas.
Assim, ele compõe a bela canção
acima - Beautiful Boy (Darling boy). A
segurança paterna que ele nunca teve e o afago que ele nunca ganhou são
traduzidos em uma canção de ninar para acalentar o pequenino filho – Sean – e o
pequenino dentro do homem John – inside the
man, como ele canta em outra música
de sua autoria.
Óbvio que o passado de sua infância
não foi apagado com estes versos. Nem mesmo o ressentimento foi silenciado
facilmente com esta melodia. Entretanto, ao menos em uns minutos ele conseguiu
quebrar o ciclo vicioso de repetição do erro paterno e inspirar outras pessoas
do mundo todo a fazer o mesmo.
***
Era uma vez um jovem estudioso – também John, mas brasileiro.
De origem modesta, aprendeu desde cedo que através dos
estudos conseguiria vencer na vida. Por isto mesmo, entregava-se horas a fio
aos livros e aos cálculos, que tanto adorava.
Seu pai, analfabeto, possuía aquele tipo de sabedoria que
se adquire na vida. Por isto, mesmo sem saber escrever, desempenhava com
maestria a função de garçom – sem nunca
conseguir anotar um pedido ou usar o papel para fazer contas, nunca errou um
pedido ou um troco. Alcoolista, porém, em várias ocasiões era extremamente
grosseiro e injusto com os filhos.
Com sua inteligência, John aproveitava também para ganhar
uns trocados ensinando os colegas. Para tanto, muitas vezes, saia carregando a
antiga louza de giz por quarteirões inteiros e só chegava tarde da noite,
cansado e com os olhos vermelhos de sono. Nestas situações, seu pai alcoolizado
e violento lhe dizia – “passou o dia todo
na farra, não é vagabundo?!”.
Quando sóbrio, no entanto, o velho garçom era trabalhador,
alegre e brincalhão. E, assim, provavelmente pela afinidade que John e seu pai
tinham, o pequenino cresceu e registrou no seu psiquismo estas características
virtuosas. E o que sempre chamou a atenção de todos que o cercavam era o
fato de John nunca falar mal de seu velho e não guardar rancores.
Por outro lado, o menino guardou as carências defeituosas
do antigo garçom. Não conseguia afagar, conversar ou brincar com os próprios
filhos quando estes eram crianças, e em muitas ocasiões era injusto com
grosserias contra os mesmos. Somente muito tempo depois, quando estes começaram
a se encaminhar na vida deixando o antigo lar, o pai John se abriu para a
afetividade.
John virou professor. Um excelente professor. Escolhido
como paraninfo de suas turmas por inúmeras ocasiões. Parte disto se dava pelo
fato de, para além da exatidão dos cálculos, ele preencher a necessidade
afetiva dos alunos com carinho, preocupação e mensagens de incentivo no final
de suas provas.
Sendo assim, mesmo sem saber, seus filhos sempre o
buscaram. E o encontraram como professor – simbólica
e literalmente falando. Deste modo, o silêncio das conversas foram
preenchidos pelas falas do professor; a carência afetiva foram parcialmente
acalentadas pelo carinho do professor.
Desta maneira, embora menos poeticamente do que o John
inglês, este John brasileiro igualmente conseguiu quebrar, ao menos em parte, o
ciclo vicioso de repetir totalmente o erro paterno.
***
A relação entre pais e filhos, sem sombra de dúvida, é das
mais complexas, imbricadas e encantadoras que se estabelece entre as pessoas.
Entre a mãe e seus filhos nós a desatar e laços a apertar.
Entre o pai e seus rebentos encrencas e sublimações a se
desenrolar.
A princípio, nós, enquanto filhos, tendemos a vislumbrar
nossos pais como super-herois, totalmente aptos a nos proteger e fazer crescer.
Esta visão é importante para a nossa formação psíquica.
Até certa medida e até certo momento, porém. É preciso ir
entendendo que eles são seres humanos. E, portanto, como nós, possuem as mesmas
fragilidades. Assim, é natural que eles não consigam preencher totalmente as
nossas pendências internas e, em algumas ocasiões, até contribuam para a
formação de outras.
Sem sombra de dúvidas, há situações extremas. Em que pese
isto, em muitas ocasiões, somos nós mesmos que escolhemos continuar fixados
somente no defeito sem perceber as qualidades.
Fazer esta movimentação, entretanto, é fundamental para que
nós, filhos, enquanto pais/mães não entremos no cenário da
paternidade/maternidade repetindo os mesmos papeis e padrões que decoramos
quando criança, nem mesmo adotando outros radicalmente opostos de modo
atrapalhado.
Este movimento não anulará por completo as ausências
internas. Mas é fundamental para a nossa saúde mental.
Esta movimentação não mudará o passado. Mas será
fundamental para a construção de uma perspectiva humana mais saudável.