sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Mensagem de fim de ano

por Dr. Leonardo Machado

         Quando eu era criança, o natal era invariavelmente um momento de grande alegria. Imaginava eu, naquela época, que isto valia para todo mundo.
         O símbolo da manjedoura e do Jesus livre e simples, imortalizada por Francisco de Assis, sempre me fascinou. Com o tempo, outros símbolos criaram em mim fascínios semelhantes (se é que podemos comparar este estado de ânimo): Krishna conversando com arjuna, Sócrates altivo no leito da morte, Buda encontrando o samadhi, J. S. Bach fazendo da música seu ofício de ligação com o Divino, enfim... E fui entendendo como o mundo é plural e muitas vezes uno em suas manifestações.
         Quando comecei, porém, a atender pessoas na psiquiatria, fui verificando como este momento de final de ano tinha também outras pluralidades de emoções nos universos pessoais que antes eu não imaginava: hipocrisia, melancolia, revolta, indiferença... E fui percebendo que estes e tantos outros afetos eram expressões de um sentimento maior: a dor (talvez a verdadeira "indesejada das gentes").
         Conversando sobre estas questões com um psicanalista de Recife, bem mais experiente do que eu no lidar com o sofrimento humano, ele ponderou: "pois é, o mês de dezembro é uma época em que o psiquiatra e o psicanalista tem muito trabalho: as questões familiares e de construção de vida vêm à tona e isto muitas vezes traz também temas como perdas, insatisfações...".
         Desta forma, hoje, não sei ao certo o que este momento representa para ti. Entretanto, de qualquer maneira, quero desejar que neste final de ano (ou nos próximos) encontres um sentido positivo nisto tudo que chamamos sofrer, sorrir e viver, como propunha Victor frankl, também colega psiquiatra.
         Ao mesmo tempo, agradecer-te pela ajuda que me deste na superação das dificuldades, pela convivência nos jantares, pela amizade que se formou e pelos laços que se fortaleceram.

Abraço sincero,
Leonardo Machado

domingo, 17 de novembro de 2013

Ciclos da vida

por Dr. Leonardo Machado


… e a sessão continuou em minha cabeça. A porta do consultório se fechou, mas a janela de meu pensamento se abriu.


Continuei pensando como a vida dá voltas e tem seus ciclos. E como enfrentá-los é, a um só tempo, grande sabedoria e ato de coragem.

A infância que passa e os amigos que seguem seus rumos...
A cidade que se transforma, o bairro que muda...
Os "amores" que se vão e deixam aprendizados...
A faculdade que se vai e a formatura que se chega...
Os filhos que se vão das casas maternas e os pais que lá ficam...
Uma mudança de cidade inesperada...
As perdas mil... as descobertas sem fim...
Ideologias, sonhos, utopias, desejos... que se modificam...

E, no final de tudo isto, percebe-se que já não se é igual, embora sendo o mesmo. Porque, ao final de tudo isto, a mudança maior acontece em nós.
Mas como conseguir continuar caminhando? Talvez, o segredo esteja no próprio caminhar. Dando um passo por vez. Sem pressas, mas sem preguiça. Sem ansiedade pelo futuro, mas sem angústia pelo passado. Andando. Vivendo.



Acredito que levarei isto para a minha próxima sessão. Ou, talvez, não. Enfim… quem sabe também precisarei me deixar guiar para aprender a me conduzir?

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Sabor da vida

por Dr. Leonardo Machado

Aos poucos minha vida foi perdendo o sabor.
O salmão ao molho de maracujá que eu tanto gostava de preparar para o meu esposo já não era mais temperado com o meu entusiasmo. Tudo parecia ser feito de modo maquinal. Sem vida. Sem gosto. Incrivelmente, eu não conseguia sentir mais prazer!
Quando dei por mim, estava na cama sem energia. As forças, antes robustas, não mais me visitavam. E comecei a perceber que os atrasos de meus filhos no colégio se tornaram frequentes – o que nunca acontecia - pois eu não conseguia me levantar no horário habitual. Era como se meu corpo todo fosse um chumbo.
A situação foi se agravando e, desesperado, meu marido me levou a um médico psiquiatra, pois algo de muito errado deveria estar acontecendo comigo.
Provavelmente, em meu estado normal, eu teria relutado – é claro! Mas naqueles dias me faltaram até forças para isto.
Logo o médico percebeu a minha fisionomia sem vida, sem expressão. Perguntou-me se eu estava chorando mais do que o habitual. Foi quando me dei conta que nem chorar eu conseguia – talvez as lágrimas também não tivessem força para sair!
E, depois de uma longa consulta, o veredicto – eu estava com depressão. Nunca me imaginei passando por aquilo. Mas, de fato, deveria ser isto.
Me submeti ao tratamento médico. E, assim que constatei que a vontade voltou, resolvi iniciar uma psicoterapia.
O que me levara a ficar daquele jeito? Qual era o motivo de eu ter deprimido?
Honestamente, esperava que esta resposta pudesse ser dada pelo meu psiquiatra. Surpreendi-me, no entanto, quando ele, ao invés disto, me questionou:
-       O quê você aprendeu com a depressão?
Pareceu-me uma pergunta estúpida! O que eu poderia aprender naquele estado em que fiquei ou com aquela situação?
Não consegui, portanto, respondê-lo. E, sinceramente, quase que não volto para o consultório dele.
No entanto, aquela pergunta martelou na minha cabeça por dias. E, sem me dar conta, passei a refletir na minha própria vida. Nunca mais queria não conseguir sentir prazer! Nunca mais queria não ter forças!
Comecei a me dar conta, então, que, chegando naquilo que eu considerava ser o fundo do poço, me esforçaria para não voltar para lá.
Voltei, então, para o médico. Não desmarquei a consulta. E logo de início lhe disse:
-  Confesso ter desejado que o senhor me dissesse tudo tão facilmente como me prescreveu o medicamento.
-  Na vida, há perguntas que são difíceis de serem respondidas. Parece-me que a depressão não é daquelas doenças uni-causais. Apesar disto, ao invés de te tornares uma cientista da tua própria vida, podes amadurecer com esta experiência e ampliar a visão.
-  E foi exatamente isto que eu percebi ter acontecido comigo...
Talvez eu não consiga captar todos os motivos que me fizeram deprimir. Certo, porém, é que eu sai transformada. Melhor, eu resolvi me transformar!
 Os maracujás? Deixei-os mais saborosos. E, ao invés de só servir meu amado, passamos a nos sentar lado a lado e conversar largamente nos almoços apertados do dia a dia. Eu comecei a comer, igualmente, o salmão – é claro! E, muitas vezes, a compartilhar o melhor pedaço com ele – por que não?!
Meus filhos? Passei a me preocupar não só com os horários. Percebi que o caminho da nossa casa até a escola era longo demais para desperdiça-lo com gritos do estresse. E naqueles minutos foram construídos momentos de amor e de interação.

            E, aos poucos, minha vida foi retemperando o sabor.

sábado, 2 de novembro de 2013

Filhos e pais: rompendo nós e fomando laços

por Dr. Leonardo Machado

Feche os olhos, não sinta medo. Os monstros se foram, estão lá fora e seu pai está aqui, menino bonito.
Belo menino, antes de ir dormir, faça uma pequena prece. Todos os dias e todos os caminhos vão ficando melhores, menino bonito.
Pelo oceano navegando, mal posso esperar para ver você crescer, mas acho que precisamos ser pacientes porque ainda temos um longo caminho à frente; muito o que remar. O caminho é longo, mas por enquanto...
Para atravessar a rua segure a minha mão, a vida é assim, acontece enquanto você faz planos, menino bonito.
Belo menino, antes de ir dormir, faça uma pequena prece. Todos os dias e todos os caminhos vão ficando melhores, menino bonito.
Menino bonito, querido Sean...[1]

***

Estas palavras sensíveis certamente expressam o que muitos de nós gostariam de ter escutado de seus pais, ou de ter falado para seus filhos.
Curioso é notar que elas saíram justamente de um coração cicatrizado pela ausência paterna. E pior, massacrado pela presença inesperada do genitor reivindicando direitos de amor e de gratidão filial, justamente quando o pequenino, então crescido, ganhava fama internacional naquela que seria a maior banda de todos os tempos - The Beatles.
            John Lennon é daquelas figuras lendárias e polêmicas no cenário musical. Sem adentrarmos, porém, no mérito de seus posicionamentos, percebemos nele uma alma sensível que encontrou na arte a forma de sobreviver emocionalmente, sublimando algumas de suas encrencas internas.
            Assim, ele compõe a bela canção acima - Beautiful Boy (Darling boy). A segurança paterna que ele nunca teve e o afago que ele nunca ganhou são traduzidos em uma canção de ninar para acalentar o pequenino filho – Sean – e o pequenino dentro do homem John – inside the man, como ele canta em outra música de sua autoria.
            Óbvio que o passado de sua infância não foi apagado com estes versos. Nem mesmo o ressentimento foi silenciado facilmente com esta melodia. Entretanto, ao menos em uns minutos ele conseguiu quebrar o ciclo vicioso de repetição do erro paterno e inspirar outras pessoas do mundo todo a fazer o mesmo.

***

            Era uma vez um jovem estudioso – também John, mas brasileiro.
De origem modesta, aprendeu desde cedo que através dos estudos conseguiria vencer na vida. Por isto mesmo, entregava-se horas a fio aos livros e aos cálculos, que tanto adorava.
Seu pai, analfabeto, possuía aquele tipo de sabedoria que se adquire na vida. Por isto, mesmo sem saber escrever, desempenhava com maestria a função de garçom – sem nunca conseguir anotar um pedido ou usar o papel para fazer contas, nunca errou um pedido ou um troco. Alcoolista, porém, em várias ocasiões era extremamente grosseiro e injusto com os filhos.
Com sua inteligência, John aproveitava também para ganhar uns trocados ensinando os colegas. Para tanto, muitas vezes, saia carregando a antiga louza de giz por quarteirões inteiros e só chegava tarde da noite, cansado e com os olhos vermelhos de sono. Nestas situações, seu pai alcoolizado e violento lhe dizia – “passou o dia todo na farra, não é vagabundo?!”.
Quando sóbrio, no entanto, o velho garçom era trabalhador, alegre e brincalhão. E, assim, provavelmente pela afinidade que John e seu pai tinham, o pequenino cresceu e registrou no seu psiquismo estas características virtuosas. E o que sempre chamou a atenção de todos que o cercavam era o fato de John nunca falar mal de seu velho e não guardar rancores.
Por outro lado, o menino guardou as carências defeituosas do antigo garçom. Não conseguia afagar, conversar ou brincar com os próprios filhos quando estes eram crianças, e em muitas ocasiões era injusto com grosserias contra os mesmos. Somente muito tempo depois, quando estes começaram a se encaminhar na vida deixando o antigo lar, o pai John se abriu para a afetividade.
John virou professor. Um excelente professor. Escolhido como paraninfo de suas turmas por inúmeras ocasiões. Parte disto se dava pelo fato de, para além da exatidão dos cálculos, ele preencher a necessidade afetiva dos alunos com carinho, preocupação e mensagens de incentivo no final de suas provas.
Sendo assim, mesmo sem saber, seus filhos sempre o buscaram. E o encontraram como professor – simbólica e literalmente falando. Deste modo, o silêncio das conversas foram preenchidos pelas falas do professor; a carência afetiva foram parcialmente acalentadas pelo carinho do professor.
Desta maneira, embora menos poeticamente do que o John inglês, este John brasileiro igualmente conseguiu quebrar, ao menos em parte, o ciclo vicioso de repetir totalmente o erro paterno.

***

A relação entre pais e filhos, sem sombra de dúvida, é das mais complexas, imbricadas e encantadoras que se estabelece entre as pessoas.
Entre a mãe e seus filhos nós a desatar e laços a apertar.
Entre o pai e seus rebentos encrencas e sublimações a se desenrolar.
A princípio, nós, enquanto filhos, tendemos a vislumbrar nossos pais como super-herois, totalmente aptos a nos proteger e fazer crescer. Esta visão é importante para a nossa formação psíquica.
Até certa medida e até certo momento, porém. É preciso ir entendendo que eles são seres humanos. E, portanto, como nós, possuem as mesmas fragilidades. Assim, é natural que eles não consigam preencher totalmente as nossas pendências internas e, em algumas ocasiões, até contribuam para a formação de outras.
Sem sombra de dúvidas, há situações extremas. Em que pese isto, em muitas ocasiões, somos nós mesmos que escolhemos continuar fixados somente no defeito sem perceber as qualidades.
Fazer esta movimentação, entretanto, é fundamental para que nós, filhos, enquanto pais/mães não entremos no cenário da paternidade/maternidade repetindo os mesmos papeis e padrões que decoramos quando criança, nem mesmo adotando outros radicalmente opostos de modo atrapalhado.
Este movimento não anulará por completo as ausências internas. Mas é fundamental para a nossa saúde mental.
Esta movimentação não mudará o passado. Mas será fundamental para a construção de uma perspectiva humana mais saudável.




[1] Letra adaptada e traduzida da canção “Beautiful Boy (Darling Boy)” de John Lennon.


sexta-feira, 1 de novembro de 2013